João
tinha treze anos. Não vai ter quatorze. João morreu na calçada do Habib’s. Não
se tem certeza ainda de como. Ou de que. Foi arrastado para mais distante.
Jogado na rua como saco de lixo. Só, agonizante, sem socorro. E é isso que dói.
Está no vídeo. Para quem tiver coragem de assistir. Aviso: é triste.
Era um
menino! Tinha um pedaço de pau na mão. Ia ameaçar? Agredir? Assaltar? Ou só
brincar de alguma coisa? Como ele não está mais por aqui. Tudo indica que não
vamos saber nunca mais.
Mais um
menino de rua perdido. Um menino sem dono. Tinha família. Mas andava por aí.
Andar pelas ruas pedindo dinheiro e comida, era seu trabalho? Menino de treze
anos não era para ter trabalho. Mas onde ninguém tem dinheiro, todo mundo
precisa se virar.
A família
sabia. Concordava. Achava normal.
- Ele
ganhava um dinheirinho.
Meninos
vendendo. Meninos roubando. Meninos pedindo. É comum. Mas não é normal. Não
pode parecer normal que um menino precise trabalhar para ter o que comer. Ou
ter que pedir comida na rua. Que seja pedinte em porta de lanchonete. Ou seja
lá onde for. Que fique horas vendo outros meninos entrarem e se fartarem
enquanto sua barriga dói de fome.
Treze
anos é muito pouco. Precisa do olhar os pais. De atenção, de supervisão, de
conselhos. De comida em casa, de educação de qualidade, de lazer, de segurança,
de saúde, de conforto. É direito deles. Está no ECA ( estatuto da criança e do
adolescente). Está na Constituição. Então por que não têm? Por que não
acontece?
Somos um
país de leis descumpridas. De muito imposto e zero retorno. De governantes que
parecem não se importar. Por aqui pobre é ninguém. Não conta. Trabalhador
também não.
Quem nada
tem, tem que arrumar de algum lugar. Sem outra saída, os meninos vêm pedir. Ou
arrancar, já que pedindo não conseguem.
Ficam em
esquinas, em ruas, sozinhos ou em bandos. Em portas de fast foods sempre têm
uma coleção deles. A gente olha com medo. Se encolhe. Esconde rápido o celular.
Segura a bolsa mais forte. E, no fundo, espera que alguém nos proteja. E suma
com eles para longe. Para a gente comer em paz. Andar em paz. Viver em paz.
Porque a
vida anda difícil para a gente também. Nem é só medo de assalto. A gente teme
pela vida. Viver com medo tem sido muito complicado.
Numa
combinação silenciosa. Onde nada é falado. Mas tudo é sabido. Os seguranças são
contratados, entre outras funções, para enxotar menino pobre para longe.
Seguranças sendo grosseiros com meninos pobres é cena corriqueira.
Seguram,
pegam pela gola, pelo braço, sacodem, batem. Há quem se sinta até aliviado com
a cena. E ache bom que alguma coisa esteja sendo feita. Há quem defenda os
meninos. Há quem finja que nada está acontecendo. E passe com cara de paisagem.
A simples
presença dos meninos assusta. A vontade, no geral, é de que esses meninos
pobres desapareçam. Como se um truque de mágica pudesse acabar com um problema
que é social. De desgoverno. Não há como dedetizar meninos. Meninos não são
baratas. Nem pragas. Não vão sumir por encanto.
Eles são fruto do nosso voto. Da falta de luta, de cobrança, de atitudes. O nosso descaso permite, de forma perversa, a morte de tantos meninos. Por espancamento, tortura ou drogas. Por tiro ou por doença sem hospital para tratar. São crianças, mesmo que tenham virado bandidos.
Nossos
filhos de treze anos têm medo dos Joãos da vida. Medo de perder as mochilas e
os tênis de marca. E a gente também. Por isso as escolas particulares têm fila
tripla na entrada, na saída.
Nossa
realidade é tão outra que a gente perde a noção do que é não ter o que comer. A
gente perde a empatia, às vezes. Se afasta, por uma espécie de defesa. Ergue
uma muralha. Prefere não fingir não ver a miséria que se instala em volta. Mas
a miséria, teimosa, insiste e bate na porta. Ela está ali. Eles estão ali.
Milhares de Joãos. Famintos de tudo. Sedentos de direitos.
Há quem
diga:
- Tem
pena? Leva para sua casa!
Não tenho
que levar ninguém para casa. Eles são muitos. Não é essa a saída. Não é assim
que se
resolve esse tsunami de flagelo em que estamos naufragados. O que matou João, não é a falta da minha casa, ou da sua. Mas, antes de mais nada, o descaso público. Um menino de treze anos merece mais do que esmolas. Merece o direito à uma vida digna.
Independente
do que fique provado, João morreu de abandono. Morreu de pobreza. João morreu
de nós. Da falta de um olhar que desviasse do próprio umbigo e ousasse ser
generoso. Que se doesse com a fome de um menino e lhe pagasse uma esfiha.
E mesmo
com dinheiro para comprar, eles continuam sendo enxotados. Sem direito a se
sentar. A comer com conforto e calma. Sabe por que? Por que há quem olhe com
nojo. E clientes não podem ser contrariados.
A morte
de João é sintoma. Do pouco caso com o outro. Do nosso egoísmo. Da nossa frieza
com a dor alheia. Do nosso comodismo com o que está aí instaurado. Como se não
houvesse esperança. Mudança. Desse jeito não há mesmo.
Nossos
meninos pobres podem ser ladrões, sim. Viciados, também. Agressivos, muitas
vezes. Mas antes de mais nada, são meninos. Só meninos arrumando um jeito de
sobreviver. Nada nunca pode justificar a morte de um menino.
O que
aconteceu com João na porta do Habibs, a gente ainda não tem certeza. Mas é a
ponta de um iceberg enorme. Querem se mobilizar? Ótimo. Aplaudo de pé. Comecem
pelos governantes.
Pelos que
a cada dia enterram mais essas pessoas na miséria. Pelos que sucatearam a
saúde, a educação. Pelos que mataram a chance desses meninos terem uma vida
digna. Pelos que, cínicos, nadam na riqueza e riem de nós. Eles matam mais de
um João por dia.
Os piores
horrores acontecem aqui. A gente assiste. Resmunga. Escreve textão no Facebook.
E não faz nada.
Acho que
a gente deu defeito. Precisa de recall. Onde é a ouvidoria? O telefone do SAC
desse país? Do povo desse país? Esse texto é triste. Como triste é a dura vida
dos nossos meninos.
Um minuto
de silêncio pela morte de João. Outro para o futuro do Brasil.
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